quarta-feira, 27 de agosto de 2014

O MENDIGO QUE SABIA DE COR OS ADÁGIOS DE ERASMO DE ROTTERDAM


O título em si do livro já intimida um bocado e, quando não assusta de vez, autoriza no máximo uma aproximação respeitosa. Acreditando que poderá ter vida mais fácil ao vencer a sua capa, o intrépido e desconfiado leitor supera o preconceito inicial e resolve abrir o exemplar (afinal de contas é uma obra agraciada com o prêmio Jabuti). Aí é que vem o engano: o seu conteúdo se revela ainda mais intimidador, de modo que, se o atrevido leitor não for paciente, não permanecerá em sua páginas por muito tempo. É assim mais ou menos a relação com O Mendigo que Sabia de Cor os Adágios de Erasmo de Rotterdam, de Evandro Affonso Ferreira. 

Na verdade, nem a sensação de ter entrado de fato no livro eu tive. Parece que acompanhei tudo a distância. É como um sujeito que de papel na mão chega ao endereço de um teatro alternativo indicado por um colega de trabalho. Ele hesita em seguir adiante porque a fachada do edifício não é nada convidativa. Como já tinha chegado até ali, decide se aproximar do local, mas as portas estão trancadas, os vidros das janelas estão embaçados e só lhe resta uma pequena frincha na parede de onde, com um só olho, pode acompanhar o espetáculo que se desenrola lá dentro. A posição é desconfortável, a peça é confusa, o espectador não consegue se envolver emocionalmente, e logo ele se cansa e se distrai. 

Foi assim que me senti ao ler a história de um homem bastante erudito que, perturbado por conta de uma desilusão amorosa, decide morar nas ruas de uma grande cidade. No seu monólogo, esse erudito solitário, já perto da loucura, relata a sua relação com a mulher amada, o fora que levou dela, sua esperança de rever esse grande amor, bem como faz reflexões sobre sua vida, sobre a vida de outros mendigos, sobre a sociedade em geral. E toma-lhe uma enxurrada de palavras difíceis, construções sintáticas inusitadas, neologismos, citações filosóficas, nomes de figuras mitológicas pouco conhecidas e, claro, reprodução de vários adágios de Erasmo de Rotterdam; sem falar na repetição frequente, no relato do protagonista, de várias expressões e desejos seus, como se fossem bordões que adquiriu na sua luta diária para não deixar as lembranças escaparem.

Como se pode perceber é uma leitura difícil e arrastada, que exige atenção, paciência e consultas constantes a dicionários e ao Google. Não vou dizer que é um livro ruim, nem tampouco pretensioso, enganador ou afetado; não é por aí. É um livro pouco amistoso, vamos dizer. Essa antipatia se deve à escolha radical de Evandro Affonso Ferreira de privilegiar a forma em detrimento de um comunicação mais aberta com o leitor comum, o que parece ser uma característica do autor. O resultado é um livro culto, com boas percepções sobre a vida e sobre a sociedade, mas praticamente sem emoção. 

É como se fosse um convite para um encontro, num começo de noite de uma quinta-feira qualquer, reservado a um grupo seletíssimo de pessoas. Nesse evento, os poucos convidados, de pernas cruzadas e óculos na ponta do nariz, exaltam, em tom comedido e excessivamente formal, as virtudes estilísticas da obra em discussão. Hummm...! Não sei... pode até ser legal, mas eu prefiro uma festinha mais animada. 

4 comentários:

  1. adorei sua crítica, me fez ter vontade de ler...

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    1. É um livro diferente, difícil, fechado, mas é bom para ter a experiência. Tem gente que gosta de leitura assim, de repente é seu tipo.

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  2. É exatamente isso. O livro não conseguiu me passar emoção nenhuma. Perde feio para o seu derrotado no Jabuti, o Barba Ensopada de Sangue, que também não é uma obra excepcional, mas consegue prender a atenção do leitor. Pelo menos para mim, o livro do Evandro Affonso serviu para excluir os Jabutis da vida como parâmetro de escolha de leitura.

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    1. Sem dúvida, Max, Jabuti parece não ser mais referência. A impressão que me dá é que os concursos escolhem livros o mais hermético possível. Do livro Barba Ensopada de Sangue, só li as trinta primeiras páginas; parece ser bem; ao menos ele tenta conversar com o leitor.
      Agradeço o comentário

      Abraços

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