terça-feira, 22 de outubro de 2013

FAROESTE CABOCLO (FILME)



Um dos problemas que enfrenta quem resolve fazer um filme baseado ou inspirado em um livro já conhecido é que o expectador já leva consigo algumas imagens mentais que podem ou não coincidir com as apresentadas pelo diretor. Daí a razão de tantas opiniões divergentes a respeito de um filme nesses termos, afinal cada um faz a sua própria imagem, que no máximo se assemelha, mas nunca é igual a de qualquer outra pessoa. Se o diretor "acerta" na representação da imagem que faz a maioria, com uma ou outra ressalva, o filme vai ser bem recebido; se ele não "acerta", os fãs do livro rejeitam, sem piedade, a obra cinematográfica. Se com o livro o risco de erro é grande, imagina com a música, em que as lacunas para livre preenchimento de quem a ouve são ainda mais largas.

Com efeito, não é só "acertar" nas imagens mentais que o sucesso do filme estará garantido. Deve-se somar a esse fator, a capacidade do diretor em transmitir as ideais essenciais da obra original. E o grau de subjetividade do que são essas ideais essenciais é ainda maior numa canção do que no livro. E quando essa música é Faroeste Caboclo - um grande sucesso em todo Brasil, que levou cada pessoa a fazer seu próprio filme na cabeça -, o risco de não atender o que as pessoas imaginam é enorme. Enfim, por tudo isso, a tarefa de René Sampaio, que dirigiu o filme Faroeste Caboclo, era por demais espinhosa. E, na minha opinião, ele sai bastante arranhado; ele mais errou do que acertou.

A história todo mundo conhece de cor e salteado; muitos desde a infância. Então vamos logo para as minhas impressões: o que achei bom e ruim no filme. Vamos falar primeiramente do que ele acertou. Convém ressaltar que é minha visão pessoal; baseada totalmente nas imagens que fiz para música e no que eu entendia como sendo suas ideias essenciais. Outros podem pensar diferente e devo respeitar. Como eu destaquei nos parágrafo anteriores, essa análise é muito subjetiva; todo mundo tem todo o direito de discordar. Então, vamos para o que interessa!

Primeiro acerto: as atuações. Para mim, todos foram bem, com destaque para Fabrício Boliveira e Antonio Calloni, que, respectivamente, interpretaram João de Santo Cristo e Marco Aurélio, um policial corrupto, que não existe na música e foi introduzido na trama. Os demais não se destacaram tanto com esses dois, mas não comprometeram. Outro ponto positivo foi a representação do personagem Pablo, que ficou melhor do que eu imaginava, não só fisicamente, mas comportamentalmente. Ele é cômico e cruel na medida certa.

Outra boa sacada foi a forma como João de Santo Cristo conheceu Maria Lúcia. E o tom que o diretor deu para o romance também ficou bem adequado: sem carregar demais no drama, armadilha fácil de cair por conta da intensidade da relação passada pela música.

Ainda no âmbito desse romance, o filme apresentou uma solução razoável para aquele trecho em que João de Santo Cristo some e, quando volta, encontra Maria Lúcia e Jeremias casados, e, o pior, ela grávida. Nessa passagem da letra, a gente fica se perguntando o que poderia ter levado Maria Lúcia, que jurava amor eterno a João, a se casar, do nada, com Jeremias. O roteiro preenche essa brecha até razoavelmente bem, mas ainda deixa buracos. Achei que Jeremias tomou sua decisão com base em motivações infantis e aceitou Maria Lúcia com muita facilidade, só por um capricho. O roteiro poderia apresentar motivação mais consistente para que Jeremias a aceitasse como mulher.

Por falar em risco de exagerar no drama, ele também conseguir fugir da armadilha do dramalhão ao elaborar um final mais verossímil e comedido do que o apresentado pela música, apesar de um escorregão isolado nessa cena final, justamente no momento em que Jeremias toma uma atitude injustificadamente exagerada e patética, que destoou do clima sóbrio que imperava nessa sequência.

O último acerto foi a introdução do papel de Antonio Calloni, um policial corrupto, que salvou as cenas de ação e de confronto com João de Santo de Cristo, pois, nesse aspecto, o personagem de Jeremias deixou muito a desejar. Esperava bem mais de Jeremias. A partir de agora, vou me deter no erros do filme.

Já que citei Jeremias, vou continuar nele. Além da motivação infantil para se casar com Maria Lúcia, vi outro problema sério na construção desse personagem. Quando eu ouço a música, eu imagino um sujeito corajoso, seguro, frio e calculista. O Jeremias do filme é totalmente o oposto: medroso, mimado, inseguro. É um playboyzinho que se mete a bandido. A figura do vilão forte no filme ficou a cargo do policial corrupto, muito bem interpretado por Antonio Calloni.

Outro erro grave, para mim o pior, foi o personagem de João de Santo Cristo. A música transmite a ideia de que ele era uma criança diferente das demais da localidade onde morava, de que era inquieta e não se reconhecia no lugar onde nasceu. Tinha naturalmente personalidade forte, uma parte obscura que nasceu com ele; era algo de índole. Esse seu lado difícil na personalidade foi reforçado pelo assassinato do pai e pela experiência no reformatório. Já, no filme, João é o típico menino da roça: amuado, tímido, calado, que se revolta quando vê o pai ser assassinado. Depois, por ter cometido um crime, ele vai para o reformatório, "onde aumentou seu ódio, diante de tanto terror." Na obra cinematográfica, ele é mais vítima das circunstâncias, que comete um crime só porque viu o pai ser assassinado e, depois, piora com a internação. Já Renato Russo retrata uma criança e um adolescente de forma totalmente diferente: era um menino que trazia um inconformismo imanente, que ficou mais grave com os infortúnios pelo quais ele passou, mas que não foi despertado por eles.

Por falar em infância, o filme poderia ter trabalhado melhor essa fase do protagonista, para que entendêssemos melhor a formação de sua personalidade. Temos algumas poucas cenas no começo do filme sobre o João ainda criança e depois alguns flashbacks.  Ficamos com a impressão de que não conhecemos direito João e inferimos que ele saiu de sua cidade só porque não lhe restou outra opção. Se não foi isso, faltaram elementos para entendermos os reais motivos de ele ter vindo para Brasília.

Independentemente dos reais motivos de sua emigração, não conseguimos enxergar nenhum dos seus conflitos internos apontados pela canção: "sentia que aquilo ali não era seu lugar. Ele queria sair para ver o mar e as coisas que ele via na televisão..." "... ficou cansado de tentar achar resposta e comprou uma passagem e foi direto a Salvador." No filme, ele não se sentia como estranho no ninho;  saiu do campo porque se viu sem rumo na vida. A impressão que dá é que ele ficaria na roça se não tivesse passado por tanta desgraça, o que não condiz com a letra da música, pois o João de Renato Russo sairia dali de qualquer jeito; as desgraças só lhe deram certeza e apressaram a sua decisão.

Aproveitando que citei a ida do protagonista para Salvador, o diretor prefere ignorar esse trecho da música. Achei um erro, pois ele perdeu a chance de abordar, ainda que levemente, o tema da migração em direção ao Planalto Central, tão importante para entender a formação e crescimento da periferia de Brasília, região onde João foi morar. Uma pena.

Outro ponto de que não gostei foi a forma como João encontrou Pablo. O diretor perdeu mais um aspecto importante da trama pensada por Renato Russo: a vida boêmia de João de Santo Cristo e os possíveis contatos no mundo do crime que ele desenvolveu por meio do Pablo.

Falando da fase adulta de João, o que vi no filme também não correspondeu com que imaginava para a personagem. René Sampaio cria um João desconfiado e circunspecto; já eu imaginava um sujeito solto, comunicativo e carismático. E sua rápida e fácil decisão pelo crime não é compatível com a personalidade retratada no filme; a facilidade com que ele decidiu entrar no tráfico seria mais coerente com o indivíduo descrito pela música da Legião Urbana.

Muitos vão argumentar que um filme não precisa ser fiel à obra em que é baseada. Eu concordo (apesar de achar que, no caso de Faroeste Caboclo, seria melhor optar pela fidelidade quase total). Mas esse não foi o problema. O problema é que o filme rejeitou as principais ideias da obra original. Ele praticamente só se valeu do nome das personagens e de alguns cenários. Por que então usar o nome Faroeste Caboclo? Por que não lançou um roteiro original?

Até acho que, se o roteiro fosse original, totalmente dissociado da música, eu teria gostado mais do filme; daria para dizer que é um bom filme. Mas, como alegaram que tinha relação com a música, e minhas expectativas foram frustradas, considero o filme apenas razoável.




4 comentários:

  1. boa crítica, acrescento mais um detalhe: na música nada leva a pensar que maria lúcia fosse da alta roda de brasília, tava mais pra uma moça simples e honesta da periferia, tanto que "carpinteiro ele voltou a ser"...eu sou muito imaginoso, sempre achei que maria lúcia fosse a filha do boiadeiro que deu a passagem para Jeremias: "...to indo visitar minha filha, eu fico aqui você vai no meu lugar..." será que só eu pensei assim???????

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  2. Obrigado, Washington.

    De fato, a música nos leva a pensar que ele é do círculo social de João, ou seja, uma moça simples da periferia, como vc falou. Mas, como a música não deixa claro, o diretor e roteirista tomou liberdade e a fez uma menina rica. Não acho que tenha sido problema; ficou até interessante; a interpretação deu material para explorar a classe média alta de Brasília e serviu de gancho para João se tornar um grande traficante. Mas foi bom vc chamar atenção para esse ponto pq me fez lembrar outro desperdício: o papel do pai de Maria Lúcia, um Senador, interpretado por Marcos Paulo. Foi uma figura praticamente inútil na trama, a não ser para expulsar a filha de casa ao encontrá-la com João. O Diretor poderia ter feito dele um homem ligado ao tráfico, tendo em Jeremias um protegido. Inclusive poderia ser o interesse de ganhar ainda mais proteção que teria levado Jeremias a aceitar facilmente Maria Lúcia, mas o diretor perdeu essa chance.
    Quanto a Maria Lúcia ser filha do boiadeiro de Salvador, sabe q nunca tinha feito essa associação. Mas poderia ser uma boa. O boiadeiro daria o endereço da filha a João, para esse ir procurá-la, e daí sairia o romance. Daria um bom arranjo.
    Valeu pelo comentário!

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  3. eu gostei do filme, mas concordo que teve muita coisa que não corresponde ao que diz a canção...talvez fosse melhor não ter usado o nome faroeste caboclo e de seus personagens...

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    1. Gostei mais ou menos. Talvez tenha sido a expectativa. Deram o nome por jogado de Marketing. O Diretor argumentou que não queria fazer um vídeo clip da música, mas também não precisava desconfigurar tanto a obra original.

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